O vinho caía vagarosamente na
taça, enchendo-a de uma tintura sangue que fazia Ana divagar nas idéias que
haviam se fixado na mente pelas últimas semanas. O aroma da bebida fazia-lhe as
narinas dilatarem-se como que querendo afogar seus pensamentos pelo torpor do álcool.
Taça cheia, gole repousando sobre a língua, Ana dirigiu-se à sala e pôs no som
a música que seria, daquele dia em diante, a trilha da sua vida. Havia naquela
canção um sofrimento revoltado que só quem amou mais a alguém que a si mesmo
poderia compreender. Já havia ouvido-a em diversas vozes e a adorava nos vocais
do ‘Chico’ mas, ao ouvi-la, algumas semanas atrás, na voz de Ângela Ro Ro, não
pode mais fugir da tentação de viver a completa revolta.
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Ana se apaixonara loucamente por
Lauro ainda na escola secundária aos quinze anos e desde então sua vida foi uma
dedicação extrema ao amado, que era sua única razão de viver. Agora, aos
quarenta anos, olhava sua vida passada e via, em cada estação, sua imagem na
escuridão a segurar uma lâmpada sobre o seu amado; fizera de sua existência uma
alavanca para impulsionar a existência exitosa dele, anulara-se para fazê-lo
feliz, fingira despreocupação em todas as datas especiais que passara em casa,
sozinha ou em companhia dos gêmeos a quem dera à luz aos dezessete anos (pouco
depois de abandonar a escola) enquanto a sua razão de ser cuidava de outros
assuntos de sua vida, da carreira profissional e de coisas que não
compartilhava em casa. Ana perguntava-se, enquanto lembrava-se de tudo, ‘como
nunca percebeu que o marido não lhe correspondia na atenção, no cuidado, e que
só lhe dedicava poucas palavras protocolares?' O amor não só é cego, como também
pode ser burro.
Naquelas últimas semanas a mulher
que vivera em Ana nas últimas décadas fora dando lugar a outra totalmente desconhecida
e ela sabia que sua vida jamais seria como antes. Entendera que o tempo passa e
modifica, mesmo contra a nossa vontade, tudo o que pensávamos imutáveis; até nós
mesmos. Percebera também que o coração partido se recupera, que as mágoas
encontram lugar para repousar e até mesmo que a paixão louca encontra espaço,
uma hora ou outra, para abrigar a lucidez. Sabia, porém (e a constatação desse
fato lhe enfurecia) que o tempo longamente empregado numa relação é um
investimento que não pode ser resgatado. A sua certeza era de que não poderia
recuperar o tempo que sabia, hoje, ter sido perdido.
Desde a partida dos gêmeos para a
faculdade, Ana contentara-se em passar os dias em casa,
cuidando dos afazeres (que já não eram muitos) e gastava seu tempo em uma
contagem regressiva que parecia segurar os ponteiros das horas alongando sua
solidão esperançosa da chegada do marido. Muitas dessas contagens acabaram em
uma espera vã e em uma noite perdida na imensidão de uma cama que já há muito não
sabia o que eram os sussurros e gemidos de um casal de amantes.
Quando ouviu a notícia que
destruiu toda a sua vida, ela compreendeu a farsa que montou para sua própria
história; que tudo sempre esteve bem ali a sua frente, mas fechara os olhos e
mergulhara na fantasia que mais desejava. Como poderia aceitar que Lauro,
depois de uma carreira bem sucedida no mundo jurídico e prestes a assumir um
expressivo cargo no Tribunal, preparava-se para abandoná-la e, em fim, assumir
publicamente sua união com um mulher mais nova que ela e com quem já mantinha
um relacionamento há mais de cinco anos? Como não se dera conta desse romance
do seu amado? Como viver sem ele e com tamanha desgraça? Era traição demais.
Manteve segredo sobre sua descoberta e passou os dias a debulhar suas conclusões
e arquitetar a reação que deveria ter.
Daquele dia, semanas atrás,
passou a ouvir músicas que falassem da sua vida e da dor que estava sentindo. E
alimentava sua revolta com tudo e não perdoava. Mas soube guardar cada
sentimento destilado em ódio contra o marido e resolveu que nada faria até o
momento adequado.
Na noite anterior, embora não
tivesse nada planejado, recebera o marido para o jantar como sempre fazia. Já à
mesa, Lauro lhe noticiou que não passaria o natal no Brasil e que ela deveria
se programar para passar com amigos. Ela desejou morrer naquele instante, mas estancou
cada lágrima que forçava seus olhos e disfarçou sua indignação com tamanho desprezo
lhe dispensado. Após o jantar, Lauro recolheu-se ao quarto sem dirigir-lhe uma
palavra enquanto Ana organizava a casa naquele dia que acabava. Ao terminar
todas as tarefas pertinentes às pessoas que se dedicam a garantir o conforto
doméstico dos que dele precisam para tocar suas vidas sem se incomodar com as
pequenas tarefas, dirigiu-se ao quarto no qual repousava já em um sono profundo
o seu grande amor, o seu único amor. Tomou um banho, perfumou-se e deitou ao
lado do marido para mais uma noite de solidão acompanhada.
Eram 5 e 30 da manhã quando Ana
acordou. Viu no rosto adormecido de Lauro um sorriso de paz e tranqüilidade que
há muito não via. Lembrou de como fora feliz enquanto desconhecia toda a
verdade de sua vida e desejou, por um instante, ter força para esquecer tudo. Naquele
momento, como que orquestrado pelo destino, Lauro, num sonho arrebatador,
murmura pronunciando o nome da mulher a quem, de verdade, estava amando, e Ana percebeu
que não adiantava esquecer a verdade, pois em pouco tempo ela seria atirada em
sua face. Levantou-se e foi até a cozinha, escolheu no faqueiro sua lâmina mais
afiada e, voltando ao quarto, deslizou-a na garganta do seu traidor, tão
mansamente que não se ouviu um gemido sequer.
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O esguicho de sangue que lhe
atingiu o colo não a incomodava; misturava-se agora aos pingos de vinho que lhe
escorriam pelo canto da boca. E, lembrando mais uma vez do dia que se conheceram
e de muitos e muitos episódios vividos, aumentou o volume do som e perdeu-se em
devaneios ouvindo Ângela sofrer ao cantar “... Deixe em paz meu coração, que
ele é um pote até aqui de mágoa; e qualquer desatenção, faça não, pode ser a gôta
dágua...”.
Adorei o texto, tem um cotidiano das mulheres de Atenas, bem como algo da tragedia grega Medeia (Euripede), tao brilhante como o que Chico reproduziu em a Gota d'agua...Foge de tudo isso com outros sinais: na linha do tempo, na escolha da faca como instrumento do homicidio, o amor e a frieza caminhando de maos dadas...Um gesto natural e humano, o do desespero, de quem investe em um sentimento, de entrega total do seu eu, vivendo em funçao de outrem. A consciencia de tudo isso traz o desfecho...
ResponderExcluirObs. alguns consertos, de digitaçao, vc os achara facilmente. Xero...Parabens
Obrigado pelo comentário e pelas dicas. Fiz algumas correções, mas receio não ter percebido todas as falhas. Então, se puder orientar sobre mais alguma correção, agradeço desde já. Abraços.
ResponderExcluirSem palavras para comentar! Só uma dica, "continue escrevendo".
ResponderExcluirAdorei todos os textos!