domingo, 18 de dezembro de 2011

Uma Traição


O vinho caía vagarosamente na taça, enchendo-a de uma tintura sangue que fazia Ana divagar nas idéias que haviam se fixado na mente pelas últimas semanas. O aroma da bebida fazia-lhe as narinas dilatarem-se como que querendo afogar seus pensamentos pelo torpor do álcool. Taça cheia, gole repousando sobre a língua, Ana dirigiu-se à sala e pôs no som a música que seria, daquele dia em diante, a trilha da sua vida. Havia naquela canção um sofrimento revoltado que só quem amou mais a alguém que a si mesmo poderia compreender. Já havia ouvido-a em diversas vozes e a adorava nos vocais do ‘Chico’ mas, ao ouvi-la, algumas semanas atrás, na voz de Ângela Ro Ro, não pode mais fugir da tentação de viver a completa revolta.

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Ana se apaixonara loucamente por Lauro ainda na escola secundária aos quinze anos e desde então sua vida foi uma dedicação extrema ao amado, que era sua única razão de viver. Agora, aos quarenta anos, olhava sua vida passada e via, em cada estação, sua imagem na escuridão a segurar uma lâmpada sobre o seu amado; fizera de sua existência uma alavanca para impulsionar a existência exitosa dele, anulara-se para fazê-lo feliz, fingira despreocupação em todas as datas especiais que passara em casa, sozinha ou em companhia dos gêmeos a quem dera à luz aos dezessete anos (pouco depois de abandonar a escola) enquanto a sua razão de ser cuidava de outros assuntos de sua vida, da carreira profissional e de coisas que não compartilhava em casa. Ana perguntava-se, enquanto lembrava-se de tudo, ‘como nunca percebeu que o marido não lhe correspondia na atenção, no cuidado, e que só lhe dedicava poucas palavras protocolares?' O amor não só é cego, como também pode ser burro.

Naquelas últimas semanas a mulher que vivera em Ana nas últimas décadas fora dando lugar a outra totalmente desconhecida e ela sabia que sua vida jamais seria como antes. Entendera que o tempo passa e modifica, mesmo contra a nossa vontade, tudo o que pensávamos imutáveis; até nós mesmos. Percebera também que o coração partido se recupera, que as mágoas encontram lugar para repousar e até mesmo que a paixão louca encontra espaço, uma hora ou outra, para abrigar a lucidez. Sabia, porém (e a constatação desse fato lhe enfurecia) que o tempo longamente empregado numa relação é um investimento que não pode ser resgatado. A sua certeza era de que não poderia recuperar o tempo que sabia, hoje, ter sido perdido.

Desde a partida dos gêmeos para a faculdade, Ana contentara-se em passar os dias em casa, cuidando dos afazeres (que já não eram muitos) e gastava seu tempo em uma contagem regressiva que parecia segurar os ponteiros das horas alongando sua solidão esperançosa da chegada do marido. Muitas dessas contagens acabaram em uma espera vã e em uma noite perdida na imensidão de uma cama que já há muito não sabia o que eram os sussurros e gemidos de um casal de amantes.

Quando ouviu a notícia que destruiu toda a sua vida, ela compreendeu a farsa que montou para sua própria história; que tudo sempre esteve bem ali a sua frente, mas fechara os olhos e mergulhara na fantasia que mais desejava. Como poderia aceitar que Lauro, depois de uma carreira bem sucedida no mundo jurídico e prestes a assumir um expressivo cargo no Tribunal, preparava-se para abandoná-la e, em fim, assumir publicamente sua união com um mulher mais nova que ela e com quem já mantinha um relacionamento há mais de cinco anos? Como não se dera conta desse romance do seu amado? Como viver sem ele e com tamanha desgraça? Era traição demais. Manteve segredo sobre sua descoberta e passou os dias a debulhar suas conclusões e arquitetar a reação que deveria ter.

Daquele dia, semanas atrás, passou a ouvir músicas que falassem da sua vida e da dor que estava sentindo. E alimentava sua revolta com tudo e não perdoava. Mas soube guardar cada sentimento destilado em ódio contra o marido e resolveu que nada faria até o momento adequado.


Na noite anterior, embora não tivesse nada planejado, recebera o marido para o jantar como sempre fazia. Já à mesa, Lauro lhe noticiou que não passaria o natal no Brasil e que ela deveria se programar para passar com amigos. Ela desejou morrer naquele instante, mas estancou cada lágrima que forçava seus olhos e disfarçou sua indignação com tamanho desprezo lhe dispensado. Após o jantar, Lauro recolheu-se ao quarto sem dirigir-lhe uma palavra enquanto Ana organizava a casa naquele dia que acabava. Ao terminar todas as tarefas pertinentes às pessoas que se dedicam a garantir o conforto doméstico dos que dele precisam para tocar suas vidas sem se incomodar com as pequenas tarefas, dirigiu-se ao quarto no qual repousava já em um sono profundo o seu grande amor, o seu único amor. Tomou um banho, perfumou-se e deitou ao lado do marido para mais uma noite de solidão acompanhada.

Eram 5 e 30 da manhã quando Ana acordou. Viu no rosto adormecido de Lauro um sorriso de paz e tranqüilidade que há muito não via. Lembrou de como fora feliz enquanto desconhecia toda a verdade de sua vida e desejou, por um instante, ter força para esquecer tudo. Naquele momento, como que orquestrado pelo destino, Lauro, num sonho arrebatador, murmura pronunciando o nome da mulher a quem, de verdade, estava amando, e Ana percebeu que não adiantava esquecer a verdade, pois em pouco tempo ela seria atirada em sua face. Levantou-se e foi até a cozinha, escolheu no faqueiro sua lâmina mais afiada e, voltando ao quarto, deslizou-a na garganta do seu traidor, tão mansamente que não se ouviu um gemido sequer.

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O esguicho de sangue que lhe atingiu o colo não a incomodava; misturava-se agora aos pingos de vinho que lhe escorriam pelo canto da boca. E, lembrando mais uma vez do dia que se conheceram e de muitos e muitos episódios vividos, aumentou o volume do som e perdeu-se em devaneios ouvindo Ângela sofrer ao cantar “... Deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa; e qualquer desatenção, faça não, pode ser a gôta dágua...”.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Caminhar


Muitas vezes você não dá o real valor a detalhes pequenos que fazem a diferença em sua vida. Não raramente, deixa de prestar atenção nas belas paisagens que compõem o seu dia a dia, e outros que não as têm constantemente passam a apreciá-las e dar-lhes um valor que você não soube dar; e chegam para ocupar os espaços e os preservam para a sua própria alegria e fazem questão de que outros saibam da beleza ali encontrada.


Os grandes acontecimentos da sua vida jamais virão em momentos de solidão. Quando você nasceu, havia alguém para ti receber – e você passou a compor a história de muitos; quando você morrer haverá alguém para se despedir – e você levará um pouco da história de tantos outros.



Por descuido, por descaso, por qualquer motivo que se possa levantar como argumento, inúmeras vezes cobra-se das pessoas próximas algo que a elas não foi dada para guardar.



No momento em que estiver impaciente com as pessoas, reflita se tem agido de maneira a jamais irritar alguém;



Antes de exigir silêncio, lembre de quantas vezes alguém parou para ouvi-lo;



Antes de apontar os defeitos alheios como motivo para a sua irritação, pense em quantas pessoas gostam de você com todos os defeitos que você tem.



A convivência é uma via de mão dupla e não se deve exigir das pessoas o que elas não podem te dar. Exija tão somente, se for o caso, o mesmo que você lhes tem ofertado. Qualquer exigência a mais demonstra um individualismo exacerbado.



Qualquer indivíduo pode desejar ser um sol na vida dos outros. No entanto, tal desejo só resulta em bons frutos se for calcado na idéia de que o sol nasce para todos e, nunca, na teoria de que tudo gira em torno dele.



Lembre-se de que todo e qualquer ser humano tem desejos, planos e sonhos que precisam fluir e que nem sempre o caminho será seguido nas mesmas companhias; do dia em que você nasceu, até aqui, muitas pessoas foram importantes na sua jornada, mas algumas permaneceram ao seu lado por pouco tempo; estas compõem, já, a história da sua existência.



Não estranhe o fato de um companheiro de viagem descer do trem numa estação antes da planejada. Talvez seja necessário que ele siga outra direção sozinho, ou em outras companhias. É a história dele que ele tenta compor.



Seja feliz da maneira que pode e se não puder levar seus insucessos em sua própria bagagem, não torne a de alguém mais pesada; melhor seria jogá-los fora e continuar a viagem.



E não esqueça, jamais, que todas as pessoas que te encontram no caminho levam algo de você, assim como deixam algo delas. Assim é a vida.



Não guarde mágoas. Elas pesam demais e não deixam espaço para novos sentimentos.



E não prenda-se ao momento presente como se fosse durar para sempre. Lá adiante você olhará para trás e perceberá que foi tudo uma experiência para o seu próprio crescimento.



Procure estar feliz. Todos estão tentando.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O Próprio Amor


Atendeu ao telefone e ouviu aquela voz tão familiar e que, por tantos dias – tempos atrás - esperara ansiosamente pelas palavras que ecoavam em toda a sua alma e faziam flutuar nos sentimentos multicoloridos que só aos apaixonados é concedido sentir. O diálogo que se seguiu pareceu, ao ser rememorado, uma paródia tardia de um drama que se quer disfarçar em comédia:

- Alô!
- Oi.
- Reconheceu minha voz?
- Reconheci (e como não reconhecer de imediato aquele que foi um desejo constante nos últimos dez anos e que se queria em afeto e carinho, em demonstrações de importância que nunca vieram?).
- E então, como está? Nunca mais me ligou. Esqueceu de mim?

Naquele momento um filme completo, em frações de segundo, passou-lhe à mente: todos os momentos de espera que se tornaram vazios, a tão esperada importância que se queria ter e que jamais se concretizara, todas as frustrações de uma paixão e dedicação nunca correspondidas...

- Que é isso! É que ando com muitas ocupações...
- Mas, nem um tempinho para me ligar? Tenho pensado muito em você por esses dias.

E um sorriso se desenhou nos lábios (um daqueles, que esboçamos com uma tentativa de disfarce quando não queremos ser vistos), como recompensa pelo sucesso alcançado com o seu plano: dar um gelo naquele que fora seu amor por tanto tempo, distanciando-se e dificultando a comunicação, deixando o círculo de amigos em comum e evitando os mesmos ambientes, para que sua falta fosse sentida.

- Ah! Eu também me lembro de você.

O plano dera certo. Mas, inversamente ao que se planejou de início, o tempo em que se dispôs a passar distante do seu objeto de desejo deixou claro que era possível, sim, viver sem ele: o amor deixara de existir com a mesma leveza com a qual havia se instalado.

- Então, se lembra de mim, me dá notícias de vez em quando. Lembra de mim de verdade. Estou com saudades.

- Claro. Te ligo qualquer hora dessas. Vou desligar para terminar umas tarefas aqui. Tchau.

E, desligando o telefone, sorriu imensamente feliz pela constatação de que, agora, pensava mais em si.




* Imagem capturada da página noitesroubadas.blogspot.com através do Google Imagens 


Teste

Vamos falar sobre sentimentos e seus desdobramentos na filosofia que nortearam e nortearão a raça humana em sua caminhada.